Que eu seja a última: Mônica Ozório

Hoje terminei o livro "Que eu seja a última", de Nadia Murad, ganhadora do prêmio Nobel da Paz em 2018. No preambulo, sua advogada na luta para condenar os genocidas, torturadores e estupradores do grupo terrorista Isis (Estado Islâmico) diz: "Nadia foi uma entre as milhares de yazidis que foram levadas pelo ISIS e vendidas em mercados e através do Facebook, por vezes por quantias tão irrisórias como vinte dólares. A mãe de Nadia foi uma das oitenta mulheres mais velhas que foram executadas e enterradas em sepulturas anônimas. Seis dos seus irmãos estavam entre as centenas de homens assassinados num único dia. (...) nenhum membro da organização fora julgado em tribunal, em nenhuma parte do mundo, por estes crimes." Nadia e a advogada Amal Clooney (entre outros), batalharam incessantemente junto a organizações mundialmente importantes para modificar isso e levar os criminosos à justiça. "Ao longo do tempo, Nadia não só encontrou a sua própria voz como se tornou a voz de todos os yazidis que são vítimas de genocídio, de todas as mulheres que são vítimas de abusos, de todos os refugiados que são deixados para trás. Os que pensaram que a podiam calar com a sua crueldade estavam enganados. O ânimo de Nadia Murad não foi quebrado e a sua voz não será emudecida." (Amal Clooney)
Nadia nos conta inicialmente a história de sua aldeia Kocho de religião e cultura yazidi (grupo étnico-religioso) Apesar da pobreza e da vida dura, das ruas cheias de lama nos invernos, e de no verão todos dormirem nos telhados das casas, pois o calor dentro era terrível, ela adorava viver lá. Nesses telhados, os vizinhos batiam papo e riam até dormir. Ela amava sua aldeia, os vizinhos e a família. Sonhava em abrir um salão de cabelereiro, onde também faria maquiagem nas noivas.
Seu povo, os yazidis amam a um Deus único, o mesmo dos cristãos, e ao invés de rezarem através de Jesus, como manda as escrituras cristãs, rezam através do anjo Tawusi Melek. Isso é constantemente usado contra eles, a ponto de causar genocídios terríveis. Outras religiões distorcem o anjo em demônio e portanto, consideram que os yazidis são infiéis. A religião, como é tão comum na História, foi mais uma vez usada para inflamar ódio, intolerância e genocídios.
No entanto os yazidis são um povo simples, sem ambição por acumular terras e poder, que oram três vezes ao dia de maneira espontânea, ao invés de cheios de preces decoradas, voltados para o sol ou para a lua, o que mais uma vez é utilizado como desculpa para as matanças generalizadas. Ninguém lembra que os mulçumanos rezam voltados para Meca. Não é igual. Mas não é diferente tampouco.
Em Kocho o povo pouco ligava para a complicada política iraquiana, com seus curdos ao norte, os mulçumanos xiitas ao sul e no meio, os sunitas (fora minúsculas comunidades de outras religiões ou etnias). Kocho se preocupava apenas com as colheitas, os casamentos da aldeia, com a criação das ovelhas, com a amizade entre os vizinho e famílias grandes. 
Mas o grupo ISIS chega em Kocho. Repetindo todos os piores momentos humanos na face da terra, nos vemos diante do horror da matança dos homens e mulheres idosas. Separação dos jovens imberbes para tentar fazê-los lutar ao lado desses fanáticos ou servir de menino bomba e escudo. Uma verdadeira lavagem cerebral em jovens impressionáveis, que adestrou até um dos irmãos de Nadia. E isso não é spoiler, pois está claro no prefácio tudo que se passa em Kocho (e que já havia se passado em outras vilas): a utilização de mulheres como escravas sexuais com a desculpa de que os mulçumanos não pecariam ao fazer sexo com escravas infiéis. E esse é mais um modo (sujo mas inteligente) de atrair mais e mais soldados para suas fileiras. O genocídio. A lavagem cerebral nos meninos, antes tão doces e inocentes.
É impressionante como a luxúria masculina pode transformar nos dias de hoje jovens mulheres e pré adolescentes em escravas e facilmente o tráfico delas se espalhar. O sujeito que era dono de uma loja frequentada por Nadia e sua família, agora fazia parte dos que achavam que podiam comprar mulheres e usa-las ao seu bel prazer. Sem um mínimo de dor na consciência. Suas carteiras de identidades eram queimadas para que deixassem de ser uma pessoa e virasse mercadoria. Uma coisa. Lojistas, juízes, pessoas antes tão "normais", agora compravam meninas sem o menor pudor. Um plano absolutamente pensado pelo EI, como forma de aliciamento de parceiros e soldados.
Nadia foi passada de mão em mão, e até estupro coletivo ela sofreu. Pode-se dizer que teve "sorte" em conseguir escapar dos estupros e espancamentos em poucos meses. Mas isso não diminui o trauma. Muitas outras não conseguiram escapar com vida. Vários meninos foram resgatados, mas alguns já estavam encantados em usar o uniforme negro da EI e portar metralhadoras, se negando a fugir. Restou a ela contar sua história pelo mundo, pedindo que os integrantes do Estado Islâmico e cidadãos coniventes sejam levados à justiça. Trabalha até hoje pelo mundo expondo tudo que passou e lutando por seu povo.  Em 2016 se tornou a Primeira Embaixadora da Boa Vontade para a Dignidade dos Sobreviventes de Tráfico Humano das Nações Unidas
 Eu amei esse livro. Comecei ontem, varei a madrugada até 5 horas, tirei uma soneca e terminei domingo de manhã. Seu discurso é intenso, vívido. Tanto as alegrias quanto os sofrimentos aparecem coloridos, nítidos em minha mente. Parece que conheço cada pessoa e cada lugar descrito por Nadia.
Nadia criou O Código Murad preocupada em preservar evidências que possam ser levadas aos tribunais para tentar alcançar a justiça e proteger jovens para que possam dar em segurança seus depoimentos. Segundo ela, "A história mostra que sempre que um conflito eclode em qualquer lugar do mundo, seguem-se as violações e a brutalidade. Estamos a ver isso na Ucrânia agora, com relatos de violência sexual que devem alarmar-nos. A violência sexual não é um efeito colateral, é uma tática de guerra tão antiga quanto o mundo."
Essa resenha, além de imensa, não é corrida e fácil de escrever como as outras que fiz, porque o assunto é complexo demais (política, etinia, religiosidade, violência, lavagem cerebral, etc). Não consegui escrever com facilidade e não o acho fácil de ler e entender. É muita coisa. Tentar resumir aqui foi complicado e realmente não achei que foi bem escrito. Mas o livro me comoveu. E me encantei com o yazidis, mesmo com alguns comportamentos arcaicos que nós, ocidentais, não aceitaríamos de bom grado. Eu duvido que essas mulheres consigam justiça. Mas torço que sim. Ser objeto descartável já não deveria mais ser um papel imposto às mulheres.

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