Miss Eucalipto: Carlos Benites

 



            Meus amigos, vocês me dão o prazer da visita toda noite para ouvir meus causos e tomar um cafezinho. Não sei se já lhes contei sobre a moça que vivia lá numa casa no morro no Bairro de Fátima. Não contei sobre a famosa Miss Eucalipto? Eu a revi esses dias lá num dos bares da Rua São José.  Eu a conheci quando tinha meus 13 anos, embora tanto eu quanto ela já morássemos há muito mais tempo. Segunda-feira, lembro bem desse dia, pois eu quis chegar mais cedo na escola já que no domingo o Fluminense tinha vencido o Fla-Flu e assim queria ter tempo para passar na banca e comprar o Jornal dos Sports e chamar os amigos tricolores para sacanear a urubuzada. Lembro que todas as discussões das segundas eram acaloradas e os derrotados do domingo nem podiam se dar ao luxo de se esconderem, pois ainda restavam mais cinco dias até que chegasse o próximo final de semana. Pois então, chegar mais cedo era uma tarefa inglória para mim, mesmo com o despertador altíssimo e com minha mãe precisando me chamar quatro vezes e até apelando para jogar uns pingos d’água no meu rosto. O uniforme foi colocado no automático, com os olhos ainda semicerrados e remelentos. O pão com manteiga e o café com leite foram engolidos em segundos e foi só ouvir a vinheta da Rádio Globo, “são sete horas em ponto” para ouvir o barulho do  motor do ônibus, o famoso 3, que passava de meia em meia hora. Desesperei-me, não vai dar tempo. Escovei os dentes tão cuidadosamente como coloquei o uniforme, que ficou com os botões em casas trocadas, e saí correndo para tentar alcançar o ônibus, aproveitando que ele daria a volta no quarteirão do Edifício Marilúcia para retornar à Rua Andrade Pinto.  Consegui. Esbaforido, entrei na condução, paguei a passagem, satisfeito por ver que chegaria bem cedo ao Grupo Escolar Raul Vidal. Em poucos minutos eu já ia descer do ônibus, que me deixava não muito próximo do colégio, pois meu ponto era próximo ao Moinho Atlântico, onde também desciam os operários que trabalhavam nos estaleiros próximos e no próprio Moinho. Quando me preparava para descer do ônibus, alguns bancos a frente se levanta a tal Miss.  Não reparei na hora, pois ela era apenas mais um passageiro querendo chegar a seu destino.  Mas assim que desci, e como ela ia na mesma direção que eu, comecei a nela reparar, pois ela ia na frente e todos os homens que vinham da direção contrária, ao passarem por ela, voltavam o pescoço em 180 graus. E a cena ia se repetindo. No início eu ri, mas aí passei a também a acompanhar com interesse o andar da musa dos operários que caminhavam pela Rua Feliciano Sodré. Vinicius diria que seu balançar era mais que um poema, a coisa mais linda que eu já vira passar. A calça jeans justa torneando os seus largos quadris lembravam aos da famosa mulata das Sardinhas 88. Devia ter 20 ou 22 anos no máximo. Minha timidez adolescente não me deixava olhar incessantemente para tal objeto de desejo de 10 entre 10 transeuntes do sexo masculino, mas cuidadosamente diminuí meu ritmo para poder ficar a uma distância dela e não ultrapassá-la. Até algumas mulheres tinham sua atenção voltada para a tágide operária. Ela entrava na Rua Barão de Amazonas e eu seguia meu caminho não sem antes dar uma última olhada em direção à morena de longos cabelos negros.
            Deixa eu pegar um café que a Cesária fez. Vocês querem com açúcar ou adoçante? Seu Libório poderia tocar uma modinha enquanto isso. Dona Das Dores, pegue uma bolacha nesse pote. Mestre Gaudêncio, o senhor é de casa, não está esperando que eu lhe leve a bandeja, né? Seu Firmino, a cegueira não impede do senhor saber de cor todos os cantos de minha casa.  Só vou colocar o cafezinho para o senhor, o restante pode se servir. ... Mas voltando à história, eu fiquei sem saber quem era aquela exuberante jovem, mesmo ela fazendo parte de minhas manhãs de segunda a sexta. Foi quando numa conversa entre minha mãe e minhas primas, ouço-as comentando daquela mulher que nenhum homem do bairro tira o olho, com um corpo de dar inveja,  que morava naquela casa que ficava isolada no meio do morro ao lado de um pé de eucalipto, e que todos diziam ser amante do português dono da quitanda. O português era todo sorriso quando a Miss Eucalipto passava, finalizou minha prima Lucia.  Aquele nome bateu nos meus ouvidos como música. Miss Eucalipto!  Miss Eucalipto! A Miss dos eucaliptos! Título bem merecido.  Nome bem mais justo do que aquele conto do Machado, Miss Dólar, que, se vocês não sabem, era o nome de uma cadelinha.  Mas a minha Miss Eucalipto não se perdia. Estava pontualmente no ônibus das 7 com suas calças jeans justas, requebrando os quadris, num rebolado natural. Pode ser que a nostalgia faça agora um desenho mais bonito às minhas lembranças, mas eu digo que era como uma cena em câmera lenta no cinema. No meu último dia de aula daquele ano ela apareceu diferente. Não estava com suas jeans. Estava com um vestido azul que ia na altura de seu joelho. Talvez por não estar acostumada a tal vestimenta, seu andar parecia meio atrapalhado, e ficou mais ainda ao perceber que ventava, não uma ventania, mas um vento suficiente para balançar o tecido do vestido. Os homens, que nos outros dias já voltavam o pescoço, naquele dia faziam também uma torcida silenciosa para que o vento lhes fosse generoso e lhes desse de presente uma visão até então misteriosa. Dessa vez eles passavam e paravam. E eu junto com eles na torcida. Disfarçadamente, pois temia ser chamada minha atenção por alguma senhora, afinal um menino teria que manter a compostura. E enquanto isso, a Miss Eucalipto tentava segurar o vestido num lado e depois em outro. O vento parecia sapeca, querendo surpreendê-la. Enfim, para alegria dos operários em volta, o vento dribla a atenção da morena, fingindo que levantaria na coxa direita e partiu para a esquerda. Nossa morena, surpreendida pelo vento, numa última tentativa de não dar o espetáculo esperado, foi com as duas mãos segurar as abas do vestido.  Além de não impedir que todos se alegrassem com a visão das coxas roliças e da calcinha branca, acabou por deixar cair uma pasta que trazia junto com sua bolsa. Envergonhada, abaixou-se para pegar a pasta. Intuitivamente, eu que estava atrás, mais rápido que ela, peguei sua pasta e algumas moedas que também foram ao chão e entreguei a ela. Ela parou e me deu um sorriso de presente. Pegou a pasta, as moedas... Você não é o Santiago, filho de Dona Rita? Ela me reconheceu. Eu não era invisível para a Miss Eucalipto. Disse então que estava com pressa, e que tinha que correr para não ser despedida. E por fim, agradeceu-me com um beijo. Intuitivamente eu girei meu rosto para que não tocasse na bochecha e sim nos lábios, mas ela deve ter percebido minha intenção e fez um contragiro, mas ao receber o beijo vi que meu movimento foi suficiente para a lateral de seus lábios tocassem a mesma parte dos meus.  Ou imaginei que houve esse toque. Um milímetro dos lábios da Miss Eucalipto foi como se tivesse recebido um beijo de cinema. Ela não me repreendeu. Sorriu e continuou sua caminhada, dessa vez sem vento.
            Como era meu último dia de aula no meu último ano no Raul Vidal, aquele tinha sido meu último encontro com ela naquela região.  E mesmo no bairro de Fátima, eu só a vi poucas vezes. Depois de algum tempo nunca mais a vi. Isso até semana passada. Fui com amigos beber uma cervejinha num bar perto do Paço Imperial. O dono do bar, seu João, bastante simpático, parou para conversar com meu grupo. Contava piadas e todos nós gargalhávamos. Meu amigo Zé falou que eu era o único que morava num local com uma bela vista, que eu era de Niterói e assim podia ver as belezas do Rio. Seu João disse então que sua mulher nascera em Niterói. De que bairro o senhor é? Bairro de Fátima? Acho que a Regina era de lá também.  Regina!  Regina! Venha cá.  Ela é quem faz essa comida gostosa que os senhores estão comendo. Uma figura feminina surge na porta da cozinha. Uma figura envelhecida, com as manchas de gordura no rosto e no avental. Quando ela se aproxima de nossa mesa, olho o seu rosto, e ao cruzar com seu olhar por um segundo, vi que a conhecia. Sim, era ela. Mas aquela visão maltratada me fez mal. Fiquei chateado por desmontar minha última imagem da Miss Eucalipto. Como aquela mulher ali em frente foi capaz, em um segundo, de destruir a bela lembrança que eu tinha? Tive vontade de me esconder, de não estar ali. Por vários anos, vez ou outra, principalmente ao me sentir solitário, recorria às recordações da Miss Eucalipto e daquele beijo. Pequeno, um milímetro, mas o melhor beijo que aquele menino de 13 anos podia ter. Seu João perguntou se ela era do Bairro de Fátima, e logicamente ela confirmou e me apresentou. Ambos nos olhamos, e acredito que a minha reação de repulsa, de querer expulsar a nova imagem da Miss Eucalipto, refletia no que ela sentiu e expressou.  Percebi que ela me reconheceu também, mas em um segundo mudou sua feição, como se estivesse buscando algo na memória. Disse que não lembrava. Intui que ela não queria que eu tivesse aquele choque de realidade, que a imagem que eu tivesse dela fosse aquela de 1982. Parecia que eu estava em frente da avó da Miss Eucalipto e não da própria.  Aos poucos passei a ter um pouco de carinho misturado com pena daquela senhora.  Possivelmente ela teria 50 anos ou um pouco mais, mas parecia ter bem mais de 60.  Disse que também não me recordava dela, me desculpando, pois eu não seria bom fisionomista, que costumava me esquecer de pessoas que conheci há uma semana. Aquela mudança também a machucava. Mas aquela situação me incomodava tanto, que logo arrumei uma desculpa para sair, que não podia ficar mais tempo por lá, que teria que acordar cedo. Mentira, mas todos acreditaram. Torci para que a ex-Miss Eucalipto, agora Dona Regina, voltasse para a cozinha. Vim para casa tentando apagar dona Regina da mente e imaginando aquele doce e sensual andar, na câmera lenta de um Sidney Polack ou de um Fellini. Da voz doce me agradecendo e não da voz rouca e cansada que saía da cozinha. Até Cesária ficou triste depois que eu lhe contei o que tinha acontecido. Mas essa reunião aqui é para a gente se divertir e não para que eu transmita minha tristeza. Prometo que amanhã eu conto uma história porreta. Vou abrir uma cerveja geladinha pra gente.

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Veja também o conto de novaes/ clicando abaixo:
http://clubedeleituraicarai.blogspot.com.br/2012/12/conto-integrante-da-antologia-premio.html

Veja também a crônica de Rita Magnago clicando abaixo:
http://clubedeleituraicarai.blogspot.com.br/2012/12/cronica-integrante-da-antologia-premio.html

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