Nova elegância do ouriço: Eloisa Helena

 


(Crônica extraída do livro "Clube de Leitura Icaraí: 15 anos entre livros") 


              A tarde ia nublada. Correra ao salão. Cortara os cabelos. Unhas, tratadas com antecedência. Percorrera as lojas em busca de um agasalho. Bem que gostaria de um casaco vermelho. Nada agradava. Nada era bom demais para aquele dia. Um dia de alvoroços que lhe lembrava estreias. Havia sensações adormecidas querendo vir à tona. O mesmo alvoroço. Há dias pensava naquele dia. Em casa, depois de ajeitar-se com a ajuda da filha, já tinha vontade de desistir. Por que fora se comprometer? Poderia criar mais laços e os que possuia já eram fortes, muitas vezes, dolorosos... Sempre o medo! Medo dos envolvimentos, da perda deles. Colocava sempre a paixão em tudo... Tanto tempo sem sair à noite!... Não seria mais cômodo ficar de chinelos, com seus livros e o PC? No entanto, abre a porta e sai.

         Recebe os beijos da noite, do vento... O frio percorre seu corpo. A noite está bem mais fresca do que imaginara. Vai com passos vacilantes, vai... Enfrenta um trânsito confuso. Está atrasada!

         Nada pode fazer. Parece uma sina, sempre atrasada para os momentos mais importantes. Vai cantarolando mentalmente uma música dos anos sessenta..setenta? do Tremendão, sim, do Erasmo e do Roberto:

"Em frente ao coqueiro verde
esperei uma eternidade
já fumei um cigarro e meio,
e Narinha não veio "



           Seria a Nara Leão? Não, era outra, a mulher dele. Coqueiro verde, praia... violões, UFF, juventude... O ônibus já ia pela praia... Agora se dera conta de que não fora à toa ter escolhido um penteado que resgata os anos setenta. Respira o ar do mar... O ônibus já fizera a curva. Dá o sinal. Emoções afloradas, misturadas aos receios. Tem de atravessar a rua, chegar à praça. Desespera-se: "Não respeitam mais os sinais!" Consegue a travessia dolorosamente preocupada. Chega à praça que de longe vislumbrara. Meu Deus, está cercada de grades! Onde as crianças nos balanços, os jovens namorando, as filas do cinema? A praça parece-lhe mal iluminada. Grades, grades... Seus olhos ficam embaçados. Vacila. Quase retorna. O coração dá pinotes... Covarde, pensa! Mas olha melhor para o possível lugar do Encontro. Há uma placa, linda placa: EdUFF. Falta pouco, mais alguns metros.

            Chega. Há guardas protegendo a casa e parecem recepcioná-la, pensa. A casa é envidraçada, há muita luz. Haveria uma lareira e vinho? Entra, que coisa mais atraente: pelas paredes, e perto delas, os objetos de seu desejo: vários livros. Há calor, vinho, luz! Sorrisos afetuosos, palavras sobre paixão. Só faltava mesmo a lareira... Pensando bem, ela lá está, depois de alguns minutos, sentada, percebe que está sim. Uma roda humana, cheia de vida, abraça a mulher... Ela foi fisgada. Não pode mais fugir deste amor. No fim da noite, guarda, na bolsa, mais um ovo da serpente sedutora: seu Crime e castigo.

            Poderia terminar aqui sua noite. Já estaria feliz. Mas não, a noite é abençoada. A faxineira da cunhada, da casa onde fora dormir, ali mesmo no bairro, diz-lhe, mais tarde, que adora romances. Ela pensa consigo: Júlia, Sabrina, livrinhos de bolso. Discretamente sonda. E constata, feliz, que não é bem assim. São romances dos bons. Aprendera a ler como as patroas, onde trabalhara. Ela, então diz:

            — Vou-lhe trazer uns romances. Já leu A elegância do ouriço?

            — Não. É sobre o quê?

            — É sobre nós: a senhora e eu!

            A senhora, dona Juciara, sorri, com poucos dentes, toda feliz.

            E ainda dizem que nosso povo não lê!




            (Dedico o texto aos companheiros do Clube de Leitura Icaraí, em Niterói, RJ)

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